Direito Aeronáutico: afinal, copiloto é ou não aeronauta?
A aplicação da CCT às categorias diferenciadas.
Publicado em 11/02/2022 por Juliana Rodrigues Barbosa
Imagem: IA
Em ação trabalhista que tramita em Goiânia/GO, um ex-empregado de uma empresa de shows pede reconhecimento da classificação da atividade exercida na empresa, a saber, atividade de copiloto, como aeronauta, bem como as verbas trabalhistas previstas nas convenções coletivas firmadas entre o Sindicato Nacional dos Aeronautas (SNA) e o Sindicato Nacional das Empresas de Táxi Aéreo (SNETA).
A empresa alegou em sede de defesa que o ex-empregado exerceu a função de copiloto subordinado ao comandante da aeronave, motivo pelo qual não se enquadraria na categoria diferenciada de aeronauta.
Argumentou, ainda, que por não se tratar de uma empresa de Táxi Aéreo, o contrato de trabalho do ex-empregado é regido pela Consolidação das Leis do Trabalho ( CLT) e não pela legislação pertinente aos aeronautas. Em primeira instância foi reconhecida a função de copiloto como aeronauta, consequentemente fazendo jus às verbas trabalhistas fundamentadas nas Convenções Coletivas (CCTs) dos Aeronautas durante o contrato de trabalho.
No entanto, a Primeira Turma do Tribunal Regional do Trabalho de Goiás (TRT-18) manteve a classificação do copiloto como aeronauta – categoria profissional diferenciada, mas não as vantagens previstas em instrumento coletivo pois a atividade econômica do empregador não se enquadra na categoria representada pelo SNETA, aplicando-se ao caso a Súmula 374 do TST.
Diante da decisão exclui-se da ex-empregadora a condenação ao pagamento das diferenças de diárias de alimentação, de cesta básica, de indenização por compensação orgânica prevista nas CCTs, assim como a multa pelo descumprimento destas.
Igualmente, ocorre exclusão do pedido de pagamento em dobro dos domingos e feriados laborados durante o turno diurno, e em triplo quando no período noturno, previstos nas normas coletivas, considerando que os instrumentos que preveem esses direitos não são aplicáveis ao contrato de trabalho do autor.
Em relação ao pedido de reembolso dos valores despendidos pelo ex-empregado para a renovação do certificado de habilitação técnica (CHT), este foi negado tanto em primeira quanto em segunda instância.
Afinal, copiloto é aeronauta?
Inicialmente faz-se necessário analisar que a chamada “Lei do Aeronauta” – Lei nº 13.475/17, parte integrante do Direito Aeronáutico Brasileiro, regulamenta o exercício da profissão dos tripulantes de aeronave devidamente especificadas no caput do artigo 1º, quais sejam: piloto de aeronave, comissário de voo e mecânico de voo.
Art. 1º Esta Lei regula o exercício das profissões de piloto de aeronave, comissário de voo e mecânico de voo, denominados aeronautas.
Ademais, o artigo 5º da mesma Lei estabelece em quais serviços aéreos laboram os aeronautas:
Art. 5º Os tripulantes de voo e de cabine exercem suas funções profissionais nos seguintes serviços aéreos:
I – serviço de transporte aéreo público regular e não regular, exceto na modalidade de táxi aéreo;
II – serviço de transporte aéreo público não regular na modalidade de táxi aéreo;
III – serviço aéreo especializado (SAE), prestado por organização de ensino, na modalidade de instrução de voo;
IV – demais serviços aéreos especializados, abrangendo as atividades definidas pela Lei nº 7.565, de 19 de dezembro de 1986 ( Código Brasileiro de Aeronáutica) e pela autoridade de aviação civil brasileira;
V – serviço aéreo privado, entendido como aquele realizado, sem fins lucrativos, a serviço do operador da aeronave.
Isto posto, resta claro que conforme a legislação, todo piloto exercendo função a bordo de uma aeronave é um aeronauta.
Portanto, ainda que o ex-empregado tenha trabalhado para uma empresa que não se enquadre nas categorias abrangidas pelos sindicatos conforme alegado e, consequentemente, suas CCT’S, ainda assim estaria enquadrado na categoria diferenciada de aeronauta.
Em suma, o reconhecimento do copiloto como aeronauta, tanto em primeira quanto em segunda instância judicial assiste razão.
Existe distinção entre copiloto e comandante?
Passemos então à alegação apresentada no processo de que, enquanto copiloto, o ex-empregado estaria subordinado ao comandante da aeronave e, assim, desprovido de autonomia para que fosse declarado aeronauta.
Sobre o tema, busca-se fundamento no Código Brasileiro de Aeronáutica ( CBA), Lei nº 7.565/86, que passamos a analisar.
A regulamentação quanto à atuação do comandante de aeronave, bem como a definição das atividades e atribuições pertinentes à função estão dispostas nos artigos 165 a 170, todos da referida lei, assim como a condição de subordinação.
Art. 166. O Comandante é responsável pela operação e segurança da aeronave.
§ 2º Os demais membros da tripulação ficam subordinados, técnica e disciplinarmente, ao Comandante da aeronave.
O código traz, ainda, ao comandante, a possibilidade de delegação de suas próprias atribuições no artigo 170 da legislação mencionada. Vejamos:
Art. 170. O Comandante poderá delegar a outro membro da tripulação as atribuições que lhe competem, menos as que se relacionem com a segurança do voo.
Considerando que sendo o copiloto, a princípio, “piloto de aeronave”, e que, para o desempenho dessa função, deve obrigatoriamente ser detentor de licença e certificados emitidos pela autoridade de aviação civil brasileira, conforme § 1º, do artigo 1º, da Lei do Aeronauta, não há que se questionar a qualificação técnica do copiloto para desempenhar função delegada pelo comandante da aeronave, qual seja, o comando.
Cumpre esclarecer que o termo copiloto comumente designa o segundo piloto em comando de uma aeronave, sendo que o treinamento recebido tanto pelo primeiro, quanto pelo segundo, em nada se diferencia.
Incisiva no particular é a emenda nº 03 do Regulamento Brasileiro de Aviação Civil (RBAC), nº 91.5 (a), que apresenta os requisitos gerais de operação para aeronaves civis e trata da qualificação técnica dos tripulantes. Vejamos:
RBAC 91.5, (a), (3): a operação for conduzida por tripulantes adequadamente licenciados/certificados e habilitados para a aeronave segundo o RBAC nº 61 ou RBHA 63, ou RBAC que vier a substituí-lo, para a função que exercem a bordo, com experiência recente, e detentores de certificados médicos aeronáuticos (CMA) válidos, emitidos em conformidade com o RBAC nº 67.
Por oportuno, vale também ressaltar que a emenda nº 13 do Regulamento Brasileiro de Aviação Civil (RBAC), nº 61, que trata de licenças, habilitações e certificados para pilotos, traz ao longo do texto o termo “segundo em comando em um avião”, restando claro que tecnicamente não há subordinação de comando, uma vez que ambos os pilotos da aeronave são comandantes.
Neste raciocínio SILVA (2016), citado por Hilton Rayol [i], traz em síntese que as atribuições do comandante estão classificadas de acordo com sua natureza, sendo “prepostos do operador da aeronave (art. 165 do CBA); diretor técnico da operação da aeronave e responsável direto pela segurança de voo (art. 166 e 169 do CBA); diretor responsável pela disciplina e ordem a bordo da aeronave (art. 166 e 168 do CBA); e oficial público, com poderes para assentar nascimentos e óbitos, celebrar casamentos e lavrar testamentos (art. 173 do CBA).”
Desta feita, a alegação do ex-empregador de subordinação do ex-empregado ao comandante durante todo o contrato de trabalho em sua atuação como copiloto e sua consequente desqualificação como aeronauta, não guarda respaldo pela legislação vigente.
Por fim, ainda que aeronave de propriedade da ex-empregadora seja de operação simples, comumente chamada de “Single Pilot”, ou seja, que somente necessita de um piloto, a decisão de contratar um segundo piloto não o reduz à condição de mero expectador do primeiro comandante.
Aplicação da Convenção Coletiva de Trabalho.
Superada a interpretação de que copiloto é aeronauta, passamos à aplicabilidade da CCT firmada entre o SNA e o SNETA ao caso em questão.
Por oportuno é preciso ressaltar que, como dito pelos desembargadores da Primeira Turma do Tribunal Regional do Trabalho de Goiás (TRT-18), aeronauta é uma categoria profissional diferenciada.
Nos moldes do artigo 511, § 3º, da Consolidação das Leis Trabalhistas ( CLT) a categoria profissional diferenciada é assim definida:
Art. 511. § 3º Categoria profissional diferenciada é a que se forma dos empregados que exerçam profissões ou funções diferenciadas por força de estatuto profissional especial ou em consequência de condições de vida singulares. [ii]
Em regra, o enquadramento sindical dos empregados ocorre pela atividade preponderante do empregador. No entanto, a exceção ocorre quando da existência de categoria profissional diferenciada, conforme leciona, João Batista Pereira Neto (2017) [iii]. Vejamos:
“(…) diversamente dos empregados em geral, que são representados pelo sindicato de trabalhadores relacionado à atividade econômica do empregador, aqueles que compõem categoria profissional diferenciada serão representados pela entidade sindical de trabalhadores que exercem aquela profissão específica.”
No entanto, a jurisprudência nos tribunais é no sentido da aplicação da Súmula nº 374 do TST, in verbis:
Empregado integrante de categoria profissional diferenciada não tem o direito de haver de seu empregador vantagens previstas em instrumento coletivo no qual a empresa não foi representada por órgão de classe de sua categoria. NORMA COLETIVA. CATEGORIA DIFERENCIADA. ABRANGÊNCIA (conversão da Orientação Jurisprudencial nº 55 da SBDI-1) – Res. 129/2005, DJ 20, 22 e 25.04.2005.
De outro lado, em acórdão proferido em 2021 sobre dissídio coletivo, a ministra relatora do Tribunal Superior do Trabalho Dora Maria da Costa, afirmou que o enquadramento sindical deve considerar a atividade efetivamente exercida. Vejamos:
“Constitui exceção à regra a existência de categoria diferenciada, em que o enquadramento não depende da atividade econômica da empresa pois é estabelecido em virtude das peculiaridades inerentes à profissão efetivamente exercida, regulamentada por estatuto profissional próprio ou executada em condições específicas e singulares, distintas dos demais empregados.” ( ROT-6309-05.2017.5.15.0000, Seção Especializada em Dissídios Coletivos, Relatora Ministra Dora Maria da Costa, DEJT 07/01/2021).
Insta destacar que não é a primeira vez que se aplica a exceção do enquadramento sindical à categoria diferenciada no Tribunal Superior do Trabalho.
Em razão da recente passagem do ministro do TST, Walmir Oliveira da Costa, o ministro aposentado, também do TST, Pedro Paulo Teixeira Manus [iv] republicou um artigo de 2015 sobre o mesmo tema com fundamento na decisão do ex-colega.
No referido artigo o ex-ministro destacou, em síntese, a fundamentação do relator do acórdão quanto a enquadramento sindical predominando o entendimento da atividade do empregador, mas destacou que “a exceção é feita aos integrantes de categorias diferenciadas, por força de estatuto profissional especial ou em consequência de condições de vida singulares”.
Para o ex-ministro Pedro Paulo Teixeira Manus a decisão à época foi uma importante interpretação do Tribunal Superior do Trabalho no reconhecimento da singularidade das atividades exercidas por profissionais de categorias diferenciadas. Vejamos:
“(…) decorre da melhor interpretação da vocação primeira da estrutura sindical brasileira. Com efeito, não obstante a Consolidação das Leis do Trabalho em seu artigo 511, § 4º, reconheça a associação em sindicato de atividades idênticas, similares e conexas, o objetivo maior é a constituição de sindicatos fundados na identidade de condições de vida profissional, pois aí a representação sindical é mais autêntica.”
O ex-magistrado finaliza o artigo enfatizando a interpretação da norma “no sentido da prevalência da representação sindical de categoria diferenciada sobre os sindicatos que congregam atividades idênticas, similares e conexas”.
Ante toda fundamentação e argumentação apresentada, não se faz lógica a aplicação da Súmula nº 374 do TST para o enquadramento sindical pela atividade do empregador e não a do empregado integrante de categoria diferenciada.
Por fim, vale ressaltar que está no cerne do direito do trabalho o Princípio Protetor, que tem por objetivo a proteção do trabalhador ante sua vulnerabilidade e hipossuficiência para o equilíbrio das relações trabalhistas.
Dentre seus subprincípios destacamos aquele que parece ser o mais acertado à análise do enquadramento sindical ao aeronauta, qual seja o princípio in dubio pro operário, dando a uma norma jurídica interpretação que favoreça o empregado.
Pois bem, retomando a ação trabalhista do copiloto reformada em segundo grau que afastou a aplicação da CCT negociada entre o SNA e SNETA, temos alguns pontos a considerar.
Em primeiro, da leitura do artigo 2º da Lei do Aeronauta é possível extrair a determinação que piloto de aeronave é também tripulante. Vejamos:
Art. 2º O piloto de aeronave e o mecânico de voo, no exercício de função específica a bordo de aeronave, de acordo com as prerrogativas da licença de que são titulares, têm a designação de tripulante de voo.
Em segundo, o § 2º, inciso V, do artigo 5º da lei retro, equipara os tripulantes empregados no serviço aéreo privado na modalidade de táxi aéreo para efeitos de CCT ou Acordo Coletivo, conforme abaixo:
§ 2º Para os efeitos do disposto em convenção ou acordo coletivo de trabalho:
I – os tripulantes empregados nos serviços aéreos definidos nos incisos III e V do caput deste artigo são equiparados aos tripulantes que exercem suas funções nos serviços de transporte aéreo público não regular na modalidade de táxi aéreo;
Cabe acrescentar que a Lei nº 13.475/17, que revogou na integralidade a Lei 7.183/84, preencheu uma lacuna jurídica quanto à representação sindical dos aeronautas sob a égide da RBAC nº 91, convenções e acordo coletivos que não faziam parte da legislação anterior. Assim, foram asseguradas melhores condições e autonomia aos sindicatos da categoria.
Por tal razão, considerando a legislação pertinente ao caso, o contrato de trabalho do ex-empregado estaria abarcado pelo § 2º, inciso V, do artigo 5º da Lei do Aeronauta, sendo assegurada equiparação do tripulante na modalidade de táxi aéreo, portanto sob as condições negociadas entre o SNA e o SNETA durante a vigência do contrato.
Cumpre destacar que não se restringe essa aplicação apenas ao piloto de aeronave, mas também a comissários de voo e mecânico de voo denominados tripulantes, nos termos dos artigos 2º e 3º da Lei do Aeronauta.
À luz de todo exposto, pode-se concluir que foi correta a decisão monocrática da 9ª Vara do Trabalho de Goiânia/GO, que aplicou ao caso a CCT do SNETA, garantindo ao ex-empregado as verbas trabalhistas fundamentadas nela fundamentadas, sendo tal decisão indevidamente reformada Primeira Turma do Tribunal Regional do Trabalho de Goiás (TRT-18).
A renovação do certificado de habilitação técnica.
Em análise última o ex-empregado requereu o reembolso dos valores despendidos pelo mesmo para a renovação do certificado de habilitação técnica, o que foi também negado pelo TRT-18.
É certo que a habilitação técnica do aeronauta está fundamentada tanto no artigo 156 do CBA, quanto a emenda nº 13 do Regulamento Brasileiro de Aviação Civil (RBAC), nº 61, que elenca as condições relativas à utilização de licenças, certificados, habilitações e autorizações:
61.3 condições relativas à utilização de licenças, certificados, habilitações e autorizações (a) Licença/certificado e habilitações de piloto: só pode atuar como piloto em comando ou segundo em comando a bordo de aeronaves civis registradas no Brasil quem seja titular e esteja portando uma licença/certificado de piloto com suas habilitações válidas, expedidas em conformidade com este Regulamento, e apropriadas à aeronave operada, à operação realizada e à função que desempenha a bordo.
Diante disso, a validade da habilitação é condicionante ao trabalho a ser desempenhado pelo empregado.
Convém ressaltar que a alínea e, do artigo 482, da CLT, traz a hipótese de caracterização de demissão por justa causa do empregado por “desídia no desempenho das respectivas funções”.
Com esse entendimento, a Quarta Turma do TST reconheceu em recente decisão [v] excluir a condenação imposta a um ex-empregador quanto ao pagamento das verbas rescisórias a um motorista pois a demissão por justa causa teria sido motivada pelo fato do ex-empregado estar com a CNH vencida mesmo após o prazo de 30 dias previstos no Código de Trânsito Brasileiro o o o ( CBT), o que impossibilitava o exercício de suas funções.
De igual forma, nos faz considerar que ao aeronauta a validade da habilitação é condição primária para a manutenção do contrato de trabalho.
Por outro lado, é necessário pontuar que os valores despendidos à renovação da validade de habilitação de piloto na situação similar ao citado na ação trabalhista são mais expressivos se comparado aos custos de renovação de uma CNH na categoria E, por exemplo.
Isto posto, teríamos na referida situação mais uma afronta ao já citado Princípio Protetor do direito do trabalho ante à hipossuficiência do empregado frente ao empregador resultando em desequilíbrio nesta relação trabalhista.
Por tal razão, a CCT firmada entre o SNA e o SNETA traz avençado o reembolso ao aeronauta das taxas relativas ao procedimento de renovação dos certificados de habilitação técnica e capacidade física.
À vista de todo o exposto, fica demonstrado que faz-se necessário um estudo mais aprofundado das relações intrínsecas entre o direito aeronáutico e o direito trabalho, aplicadas as nuances e peculiaridades inerentes às relações trabalhistas que envolvem a categoria dos aeronautas.
[i] RAYOL, Hilton. Atribuições do Comandante e o Poder de Polícia a Bordo de Aeronaves. https://hiltonrayol.jusbrasil.com.br/artigos/1266256421/atribuicoes-do-comandanteeo-poder-de-polic… Acesso em: 17 jan. 2022.
[ii] O estatuto profissional especial do aeronauta é a Lei nº 13.475 55555/17.
[iii] PEREIRA NETO, João Batista. O sistema brasileiro de unicidade sindical e compulsoriedade de representação. São Paulo: RT, 2017, p. 40.
[iv] MANUS, Pedro Paulo Teixeira. Reflexões Trabalhistas. A noção de categoria profissional diferenciada. https://www.conjur.com.br/2021-mai-07/reflexoes-trabalhistas-nocao-categoria-profissional-diferenciada Disponível em: 20 jan. 2022.
[v] Processo nº: RR-22373-15.2017.5.04.0512